terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O Conto da Ilha Desconhecida


José Saramago é um autor difícil, e isso não é nenhum segredo. Basta ler duas páginas de qualquer obra escrita por ele e ler outras duas páginas de qualquer outro autor (contemporâneo de preferência). O que normalmente é o capítulo de um livro, em Saramago são apenas duas páginas. O que é um diálogo entre duas personagens, com Saramago se torna um emaranhado de vozes que pode ser tanto a verbalização de uma ou mais personagens, uma divagação ou observação do autor que invade a página e da mesma forma que vem sem se esperar parte de forma ríspida, ou ainda a consciência que não sabemos se fala com outro alguém da obra, conosco ou com o próprio autor. O normalmente é mera descrição em Saramago se torna poesia, lirismo, reflexão ou até musica.
E ele continua não sendo um autor fácil obviamente.
O responsável por algumas das obras mais relevantes da literatura contemporânea onde se inclui O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio Sobre a Cegueira, Todos os Nomes, Intermitências da Morte... mas foi em um conto que fui apresentado a ele.
O Conto da Ilha Desconhecida é uma dessas obras que podemos ler diversas vezes e continuaremos a nos surpreender. Não que surjam coisas novas, nós é que acabamos compreendendo-a de outras formas. Há duas outras obras literárias que exercem esse efeito sobre mim (e falarei sobre elas futuramente). A primeira (e muitas vezes motivo de piada pelo status de obra sentimentalóide), é o Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que me fez chorar feito uma garotinha aos 12 anos de idade (minha vingança foi ter feito um primo de 9 anos chorar ao ler a obra para ele) que a cada nova leitura nos faz perceber com mais profundidade alguma fala, descrição ou ilustração do autor. A outra obra é O Apanhador no Campo de Centeio (ou como eu prefiro chamar A Sentinela do Abismo) onde tive a oportunidade de, assim como os milhares de adolescentes que a leram ao longo das décadas, me identificar com Holden.
A Ilha desconhecida é como essas duas obras.
Nela é narrado o pedido de um Homem ao seu Rei “Dá me um barco”. Esse barco é, segundo o maltrapilho, para descobrir a Ilha Desconhecida. O Rei se recusa, pois todas as ilhas já são conhecidas, fato confirmado também por marinheiros. Irredutível o homem responde que no mapa apenas estão as ilhas conhecidas, e que ele precisa navegar para encontrar a sua Ilha. Pois “quero saber quem sou eu quando nela estiver.”
Não é necessário escrever mais. Estão presentes características recorrentes nas obras de Saramago. Personagens sem nomes que são apresentados por sua função social (o Rei, o Maltrapilho, a Mulher da Limpeza, o Marinheiro). A humanização dessas mesmas personagens construída de forma gradativa para que possamos enxerga-los e não apenas ler-los. A narrativa que mistura falas com pensamentos, com descrições. A interpretação do conceito de propriedade privada na fala do Rei, do Maltrapilho e nas atitudes da Mulher da Limpeza.
A primeira vez que a li tinha 15 anos e a ultima vez foi aos 23.
Um amigo que fazia faculdade de Letras a leu para mim, enquanto eu desenhava imagens para um conto dele. A ultima vez foi em um aeroporto em Beauvis, uma pequena cidade da França.
A li para outra pessoa que não a conhecia, antes que esta partisse.
Em ambas as vezes senti como se o barco não apenas descobrisse a tal ilha, mas como se eu também fizesse parte dela.

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